terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

A flagelação de Jesus Cristo - por Santo Afonso Maria de Ligório.





1. Entremos no pretório de Pilatos, convertido em horrendo teatro de ignomínias e dores de Jesus, e consideremos quanto foi injusto, ignominioso e cruel o suplício que aí sofreu o Salvador do mundo. Vendo Pilatos que os judeus continuavam a bradar contra Jesus, injustissimamente o condenou a ser flagelado: “Então Pilatos tomou a Jesus e mandou açoitá-lo” (Jo 19,1). Pensou esse iníquo juiz que com esse bárbaro tratamento despertaria a compaixão dos inimigos e o livraria da morte: “Eu o mandarei punir e depois o soltarei” (Lc 23,22). Era a flagelação castigo reservado só aos escravos. Nosso amoroso Redentor, diz S. Bernardo, não só quis tomar a forma de escravo, sujeitando-se à vontade de outrem, mas a de um mau escravo, para ser castigado com açoites e assim pagar a pena merecida pelo homem feito escravo do pecado (Sem. de pass. Dm.). Ó Filho de Deus, ó grande amante de minha alma, como pudestes vós, Senhor de infinita majestade, amar tanto um objeto tão vil e ingrato como eu sou, submetendo-vos a tantas para livrar-me do castigo merecido? Um Deus flagelado! Causa mais espanto um Deus sofrer o mais insignificante golpe do que os homens todos e todos os anjos serem destruídos e aniquilados. Ah, meu Jesus, perdoai-me as ofensas que vos fiz e castigai-me então como vos aprouver. Uma só coisa desejo: é amar-vos e ser amado por vós e declaro-me então pronto a sofrer todas as penas que quiserdes.

2. Chegado que foi ao pretório nosso amável Salvador, segundo a revelação de S. Brígida (1. c., c. 70) ele mesmo se despojou de suas vestes ao mando dos algozes, abraçou a coluna e entregou as mãos para serem ligadas. Ó céus, já se dá início ao cruel tormento! Ó anjos do céu, vinde assistir a este doloroso espetáculo e se não podeis livrar vosso Rei desse bárbaro ultraje, que os homens lhe fazem, vinde ao menos chorar de compaixão. E tu, minha alma, imagina-te presente a esta horrenda carnificina de teu amado Redentor. Contempla como teu aflito Jesus está com a cabeça baixa, olhando para a terra, e, todo confuso pela vergonha, espera por esse horrendo tormento. E eis que os bárbaros, como outros tantos cães raivosos, arremetem com seus açoites contra o inocente cordeiro. Ah! este bate-lhe no peito, aquele fere-lhe os ombros; um fustiga-lhe as ilhargas, outro golpeia-lhe as pernas: mesmo sua sagrada cabeça e sua bela face não ficam livres de pancadas. Já corre o divino sangue de todas as partes: já estão embebidos de sangue os azorragues, as mãos dos algozes, a coluna e a terra. “Todo o seu corpo é rasgado pelos açoites: ora os ombros, ora as pernas, são atingidas; chagas acrescentam-se a chagas e golpes a novos golpes” (De ch. ag. c. 14). Ah, cruéis, por quem o tomais? Cessai, cessai, sabei que vos enganastes. Esse homem a quem supliciais é inocente e santo: eu sou réu; a mim, que pequei, pertencem os açoites e os tormentos. Mas vós, Eterno Pai, como podeis sofrer essa grande injustiça? Como podeis suportar que vosso Filho querido assim padeça? E não o socorreis? Que delito cometeu ele para merecer um castigo tão vergonhoso e tão cruel? 



3. “Eu o castiguei por causa dos crimes de meu povo” (Is 53,8). Muito bem eu sei, afirma o Padre Eterno, que meu Filho é inocente; visto, porém, que ele se ofereceu para satisfazer a minha justiça por todos os pecados dos homens, convém que eu o abandone ao furor de seus inimigos. Ó meu adorável Salvador, vós, para pagar os nossos delitos e em especial os pecados de impureza (que é o pecado mais comum entre os homens), quisestes que fosse dilacerada vossa carne puríssima. Quem não exclamará com S. Bernardo: “Ó caridade incompreensível do Filho de Deus para com os homens!” Ah, meu Senhor flagelado, agradeço-vos tão grande amor e arrependo-me de ter-me unido eu também, com os meus pecados, aos vossos algozes. Eu detesto, ó meu Jesus, a todos esses prazeres depravados que vos ocasionaram tantas dores. Oh! há quantos anos deveria estar queimando no inferno. Por que me esperaste até agora com tanta paciência? Vós me suportastes para que afinal, vencido por tantas finezas de amor, me rendesse ao vosso amor e deixasse o pecado. Meu amado Redentor, não quero resistir por mais tempo ao vosso afeto: quero amar-vos para o futuro quanto em mim estiver. Vós, porém, já conheceis a minha fraqueza, e as traições com que vos tratei: desprendei-me de todas as afeições terrenas que me impedem ser todo vosso; trazei-me continuamente à memória o amor que me consagrastes e a obrigação que tenho de amar-vos. Em vós ponho todas as minhas esperanças, meu Deus, meu amor, meu tudo.

4. Gemendo, exclama S. Boaventura: “Corre o sangue divino e as chagas sucedem-se às chagas e as fraturas às fraturas” (Med. vit. Chr. c. 76). Por toda parte escorria o sangue divino e seu corpo sagrado tornara-se uma única chaga, mas aqueles cães furiosos não cessavam de ajuntar feridas sobre feridas, como predissera o Profeta: “E sobre a dor de minhas chagas acrescentaram novas chagas” (Sl 68,27). Os azorragues não só cobriam de feridas seu corpo inteiro, como também arrancavam pedaços de carne, ficando essas carnes sagradas (totalmente rasgadas, podendo-se contar todos os ossos (Contens. 1. 10, d. 4, c. 1). Diz Cornélio a Lápide que nesse tormento Jesus Cristo deveria naturalmente morrer: quis, porém, com sua virtude divina conservar a vida, a fim de sofrer penas ainda maiores por nosso amor. Já S. Lourenço Justiniano havia afirmado a mesma coisa. Ah, meu amantíssimo Senhor, digno de um amor infinito, tanto sofrestes para que eu vos amasse! Não permitais que, em vez de vos amar, venha ainda a vos ofender e desgostar-vos. Mereceria um inferno à parte, se, depois de ter conhecido o amor que dedicastes, me condenasse miseravelmente, desprezando um Deus vilipendiado, insultado e flagelado por mim e que, além disso, me perdoou tão compassivamente depois de havê-lo ofendido tantas vezes. Ah, meu Jesus, não permitais. Ó Deus, o amor e a paciência que me mostrastes constituiriam no inferno um outro inferno para mim.

5. Este tormento da flagelação foi um dos mais cruéis para o nosso Redentor, porque foram muitos os algozes que o flagelaram, pois, segundo a revelação feita a S. Maria Madalena de Pazzi, foram uns sessenta (Vita c. 6). Ora, estes, instigados pelo demônio e ainda mais pelos sacerdotes, que temiam que Pilatos depois desse castigo pusesse o Senhor em liberdade, como já afirmara dizendo: “Castigá-lo-ei e pô-lo-ei em liberdade”, assentaram tirar-lhe a vida com os açoites. Acordam todos os doutores com S. Boaventura que escolheram para esse serviço os instrumentos mais bárbaros, de maneira que cada golpe abria uma chaga, como diz S. Anselmo, chegando os golpes a milhares, porque, segundo o Padre Crasset, a flagelação foi feita conforme o uso dos romanos e não dos judeus, aos quais era proibido ultrapassar o número de quarenta vergastadas (Dt 25,3). O historiador Flávio José, que viveu pouco depois de Nosso Senhor, diz que Jesus foi de tal maneira dilacerado na flagelação, que foram postas a descoberto as suas costelas. O mesmo foi revelado à S. Brígida pela Santíssima Virgem: “Eu, que estava presente, vi seu corpo flagelado até às costas, de modo que eram visíveis suas costelas. E o mais doloroso era que, ao retraírem-se, os azorragues vinham com pedaços de carne”. (Lib. I revel., c. 10). Apareceu Jesus flagelado a S. Teresa. Quis a santa vê-lo retratado tal que lhe aparecera e disse ao pintor que representasse no braço esquerdo um grande retalho de carne pendente. Mas de que maneira devo pintá-lo? Perguntou o pintor. Voltando-se então para o quadro, viu-o com o retalho já pronto. Ah, meu Jesus amado e adorado, quanto padecestes por meu amor! Ah, que não sejam perdidas para mim tantas dores e tanto sangue!

6. Mas das mesmas Escrituras se deduz quanto foi desumana a flagelação de Jesus Cristo. Por que foi que Pilatos, depois da flagelação, o mostrou ao povo, dizendo: “Eis aqui o homem”, senão porque nosso Salvador estava reduzido a uma figura tão digna de compaixão, que ele só com o apresentar ao povo julgava mover à compaixão até seus mesmos inimigos, levando-os a não exigirem mais a sua morte? Por que foi que, ao subir Jesus ao Calvário, as mulheres judias o acompanharam com lágrimas e lamentos? (Lc 23,27). Talvez porque essas mulheres o amavam e o julgavam inocente? Não, as mulheres comumente seguem os sentimentos de seus maridos e por isso também elas o tinham como réu. O motivo era que Jesus, depois da flagelação, oferecia um aspecto tão lastimoso e deplorável, que movia às lágrimas até os que o odiavam. Por que foi que nesse mesmo caminho os judeus lhe tiraram a cruz dos ombros e a deram a Simão para carregar? Segundo se deduz claramente de S. Mateus: “A este constrangeram para que levasse a cruz de Jesus” (Mt 27,32) e de S. Lucas: “E puseram-lhe a cruz para que a levasse após Jesus” (Lc 23,26), fizeram eles isso, talvez, por piedade para com Jesus e porque queriam aliviar-lhe a pena? Não, pois esses iníquos odiavam-no e procuravam afligi-lo o mais possível. Mas, como afirma o B. Dionísio Cartusiano, temiam que lhes morresse no caminho. Vendo que Nosso Senhor perdera na flagelação quase todo o sangue e que estava tão privado de forças que quase não podia mais ter-se em pé, caindo por isso debaixo da cruz ao longo do caminho e a cada passo, por assim dizer, exalando um último suspiro, foram constrangidos a obrigar a Cireneu a levar a cruz, visto que o queriam vivo no Calvário e pregado na cruz, como haviam resolvido, para que seu nome ficasse para sempre inflamado. “Arranquemo-lo da terra dos vivos e seu nome não seja mais recordado”, segundo a predição do Profeta (Jr 11,19).
Ah, Senhor, grande é a minha alegria sabendo quanto me tendes amado e que conservais por mim o mesmo amor que me tínheis no tempo de vossa paixão. Mas quão grande é a minha dor ao pensar que ofendi a um Deus tão bom. Pelos merecimentos de vossa flagelação, ó meu Jesus, vos suplico o meu perdão. Arrependo-me de vos haver ofendido e proponho antes de morrer que novamente vos ofender. Perdoai-me todas as ofensas que vos fiz e dai-me a graça de o futuro amar-vos sempre.

7. O profeta Isaías pinta-nos, mais claramente que todos os outros, o estado lastimoso a que foi reduzido nosso Redentor. Afirmou que sua santíssima carne na paixão não só seria toda dilacerada, mas também toda triturada e despedaçada (Is 53,5). Porque seu Eterno Pai, continua o Profeta, para dar à sua justiça uma maior satisfação e para fazer os homens compreenderem a malícia do pecado, não se contentou enquanto não viu seu Filho retalhado e pisado pelos açoites: “O Senhor quis quebrantá-lo na sua enfermidade” (Is 53,10), de maneira que o corpo bendito de Jesus tornou-se semelhante ao de um leproso, coberto de chagas dos pés à cabeça: “E nós o reputamos como um leproso ferido por Deus e humilhado” (Is 53,4). Ó meu Senhor dilacerado, a que estado vos reduziram nossas iniquidades! “Ó bom Jesus, nós pecados e vós fostes castigado”, exclama S. Bernardo. Que a vossa imensa caridade seja para sempre bendita e vós amado como o mereceis por todos os pecadores e especialmente por mim, que vos desprezei mais do que os outros.

8. Apareceu uma vez Jesus flagelado a Sóror Vitória Angelini, e mostrando-lhe seu corpo todo ferido, disse-lhe: Estas chagas todas, Vitória, te pedem amor. E S. Agostinho, todo abrasado em amor, exclama: “Amemos o Esposo que tanto mais se nos recomenda, quanto mais disforme se nos apresenta e tanto mais caro e mais amável se mostra à sua esposa”. Sim, meu doce Salvador, eu vos vejo todo coberto de chagas: olho para vosso belo rosto, e, ó Deus, não me parece nada belo, mas horrível, denegrido pelo sangue, cheio de equimoses e escarros. “Não tem mais beleza, nem brilho e nós o vimos e não tinha mais aparência” (Is 53,2). Mas quanto mais desfigurado vos vejo, ó meu Senhor, tanto mais belo e amável me pareceis, pois sinais de que são essas deformidades, senão de ternura do amor que me tendes? Eu vos amo, ó Jesus, dilacerado e chagado por meu amor. Quisera ver-me também despedaçado por vós, como tantos mártires que tiveram tão feliz sorte. Se não posso agora oferecer-vos feridas e sangue, ofereço-vos ao menos todas as penas que me couberem em parte; ofereço-vos o meu coração, com o qual quero amar-vos o mais ternamente possível. E o que deverá amar com mais ternura a minha alma senão a um Deus flagelado e exangue por mim? Eu vos amo, ó Deus de amor, eu vos amo, bondade infinita, amo-vos, ó meu amor, meu tudo: amo-vos, e não quero cessar mais de dizer, nesta e na outra vida: eu vos amo, eu vos amo. Amém.

Fonte: Livro “A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Autor: Santo Afonso Maria de Ligório. Páginas 48 a 53