Jesus: Filho, observa com diligência
os movimentos da natureza e da graça: pois são muito opostos uns aos outros e
tão sutis que só a custo podem ser discernidos, mesmo por um homem espiritual e
interiormente iluminado. Todos, sim, desejam o bem e intentam algum bem nas
suas palavras e obras; por isso se enganam muitos com a aparência do bem. A
natureza é astuta; a muitos atrai, enreda e engana, e não tem outra coisa em
mira senão a si mesma. Mas a graça anda com simplicidade, evita a menor
aparência do mal, não usa de enganos, e tudo faz puramente por Deus, no qual
descansa como em seu último fim.
A natureza tem horror à mortificação,
não quer ser oprimida, nem vencida, nem sujeita, nem submeter-se
voluntariamente a outrem. A graça, porém, aplica-se à mortificação própria, resiste
à sensualidade, quer estar sujeita, deseja ser vencida e não quer usar da
própria liberdade: gosta de estar sob a disciplina, não cobiça dominar sobre
outrem, mas quer viver, ficar e permanecer sempre debaixo da mão de Deus,
sempre pronta, por amor de Deus, a se curvar humildemente a toda criatura
humana. A natureza trabalha por seu próprio interesse e só atenta no lucro que
de outrem lhe pode advir. A graça, porém, pondera não o que lhe seja útil ou
cômodo, mas o que a muitos seja proveitoso. A natureza gosta de receber honras
e homenagens; a graça, porém, refere fielmente a Deus toda honra e glória.
A natureza teme a confusão e
desprezo; mas a graça alegra-se de sofrer injúrias pelo nome de Jesus. A
natureza aprecia a ociosidade e o bem estar do corpo; a graça, porém, não pode
estar ociosa e abraça com prazer o trabalho. A natureza gosta de possuir coisas
esquisitas e lindas e aborrece as vis e grosseiras; mas a graça se compraz nas
simples e modestas, não despreza as ásperas, nem recusa vestir-se de hábito
velho. A natureza cuida dos bens temporais, alegra-se por um lucro pequeno,
entristece-se por um prejuízo e irrita-se com uma palavrinha injuriosa. A
graça, porém, cuida das coisas eternas, não se apega às temporais, não se
perturba com a sua perda, nem se ofende com palavras ásperas; porquanto pôs o
seu tesouro e sua glória no céu onde nada perece.
A natureza é cobiçosa, antes quer
receber do que dar; gosta de ter coisas próprias e particulares. Mas a graça é
generosa e liberal, foge de singularidades, contenta-se com pouco e considera
"maior felicidade o dar que o receber"( At 20,35). A natureza
inclina-se para as criaturas, para a própria carne, para as vaidades e
passatempos. Mas a graça nos conduz a Deus e às virtudes, renuncia às criaturas,
foge do mundo, detesta os apetites carnais, restringe as vagueações e peja-se
de aparecer em público. A natureza gosta de ter qualquer consolação exterior
com que deleite os sentidos. A graça, porém, só em Deus procura seu consolo e
se delicia no sumo bem, mais que em todas as coisas visíveis.
A natureza tudo faz para seu próprio
interesse e proveito, nada sabe fazer de graça, mas espera sempre, pelo bem que
faz, receber outro tanto ou melhor em elogios ou favores e deseja que se faça
grande caso de seus efeitos e dons. A graça, porém, não busca nenhuma coisa
temporal, nem deseja outro prêmio, senão Deus só, e do temporal não deseja mais
do que quanto lhe possa servir para conseguir a vida eterna.
A natureza preza-se de muitos amigos
e parentes, ufana-se de sua posição elevada e linhagem ilustre, procura agradar
aos poderosos, lisonjeia os ricos, aplaude os seus iguais. A graça, porém, ama
os próprios inimigos, não se gaba do grande número de seus amigos, não faz caso
de posição e nobreza, se lhes não vê unida maior virtude. Favorece mais ao
pobre que ao rico, tem mais compaixão do inocente do que do poderoso, alegra-se
com o sincero, e não com o mentiroso. Estimula sempre os bons e maiores
progressos, para que se assemelhem, pelas virtudes, ao Filho de Deus. A
natureza logo se queixa da penúria e do trabalho. A graça sofre com paciência a
pobreza.
A natureza atribui tudo a si, em
proveito seu peleja a porfia. A graça, porém, atribui tudo a Deus, de quem tudo
dimana como de sua origem; nenhum bem atribui a si com arrogante presunção, não
questiona, nem prefere a sua opinião à dos outros, mas em todo juízo e parecer
se sujeita à sabedoria eterna e ao divino exame. A natureza deseja saber
segredos e ouvir novidades, quer exibir-se em público e experimentar muitas
coisas pelos sentidos; deseja ser conhecida e fazer aquilo donde lhe resultem
louvor e admiração. A graça não cuida de novidades e curiosidades, porque tudo
isso nasce da corrupção antiga, pois nada há de novo e estável sobre a terra.
Ensina, pois, a refrear os sentidos, a evitar a vã complacência e ostentação, a
ocultar humildemente o que provoque admiração e louvor, busca em todas as
coisas e ciências proveito espiritual e a honra e glória de Deus. Não quer que
a louvem, nem às suas obras, mas que Deus seja bendito em seus dons, que ele
prodigaliza a todos por mera bondade.
A graça é uma luz sobrenatural e um
dom especial de Deus; é propriamente o sinal dos escolhidos e o penhor da
salvação eterna, pois eleva o homem das coisas terrenas ao amor das celestiais,
e de carnal o torna espiritual. Quanto mais, pois, é oprimida e dominada a
natureza, tanto maior graça é infundida, e tanto mais cada dia é renovado o
homem interior, conforme a imagem de Deus.
Imitação de Cristo, Tomás de Kempis. Livro
III, cap. 54